1984 — George Orwell | RESENHA

Luíza Cipriani
7 min readMar 31, 2019

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1984 se tornou um dos meu livros preferidos da vida. Devo adiantar, porém, que passa longe de ume leitura leve. É um livro super angustiante, ácido e pessimista.

George Orwell nasceu em 1903 na Índia Britânica, onde seu pai trabalhava, mas viveu na Inglaterra a partir do seu primeiro ano de vida. Publicou 1984 um ano antes de sua morte por tuberculose, em 1950, e enquanto viveu foi testemunha das duas guerras mundiais e de inúmeras atrocidades ocorridas na primeira metade do século XX. É a partir deste sentimento de angústia pós guerras e de ausência de esperanças em um cenário melhor que devemos ler 1984.

O livro tem como protagonista Winston Smith, que vive em Londres no (quando escrito) futuro ano de 1984. Enquanto isso, o continente onde mora é governado por um regime extremamente totalitário, que controla absolutamente todos os âmbitos da vida dos cidadãos. O líder do governo é o Grande Irmão (Big Brother), que por meio de teletelas instaladas em todos os ambientes públicos e privados, monitora a população 24 horas por dia. Por toda a cidade há cartazes com os dizeres “Big Brother is watching you”, que simultaneamente suprimem a liberdade de expressão, de comportamento e até mesmo de pensamento!

Mas isso não é tudo. Winston trabalha em um órgão do governo chamado “Ministério da Verdade”, responsável por alterar informações de livros, jornais, revistas e outros meios de comunicação visando enaltecer a imagem do Partido. Assim, a manipulação midiática é tanta, que o governo assume também o controle do passado, e ao contrário do que costumamos pensar, este passa a ser alterável!

Outra forma que o governo encontrou de controlar o pensamento das pessoas foi a instituição de uma nova linguagem: a Novafala. Nela, as palavras eram diminuídas (por exemplo: Ministério da Verdade se tornava Miniver) afim de diminuir também a capacidade de expressão dos cidadãos. Além disso, as palavras que constituiam heresias contra o governo foram eliminadas do vocabulário, já que se não houvesse palavra para formar um pensamento, este pensamento “incorreto” não poderia existir. A Novafala, portanto, era construída para que o ato de falar exigisse o mínimo de consciência possível, especialmente quando ligadas a assuntos políticos, diminuindo cada vez mais a capacidade intelectual das pessoas.

Em 1984, a pirâmide social da qual Winston faz parte é dividida em 3 classes: no topo, o Núcleo do Partido, os comandantes do governo. No meio, o Partido Externo, composto pelas pessoas que trabalham para o governo (assim como Winston). Na base e em maior quantidade estão os Proletas, que são negligenciados pelo controle do governo e deixados à margem do regime, já que “podem desfrutar de liberdade intelectual porque carecem de intelecto”. É neste ponto que Orwell revela o brilhantismo de sua escrita, abordando questões sociais sob uma visão crítica e espantosamente atemporal. Digo isso porque é assustador o quanto a sociedade descrita no livro, vítima de um regime totalitário, se parece com a que vivenciamos hoje (claro, dadas as devidas ressalvas).

O mundo em 1984, por sua vez, é dividido em 3 grandes continentes que estão permanentemente em guerra: Lestásia, Eurásia e Oceânia, onde Winston vive. Porém, nenhum dos 3 países tem necessidade de guerrear, já que são autossuficientes em todos os sentidos. A guerra, portanto, não passa de um artifício criado pelo governo para manter os Proletas ocupados, impossibilitando-os assim de se tornarem mais ricos ou mais inteligentes.

Divisão do mundo segundo 1984

Cabe um elogio também ao posfácio incluído na edição da Companhia das Letras. Nele são apresentados 3 textos muito ricos, cada um escrito em décadas diferentes por pessoas diferentes, e é incrível perceber o quanto a percepção sobre o livro pode variar com o passar do tempo sem torná-lo ultrapassado. Isso se dá principalmente ela escrita brilhante de George Orwell e pela sua abordagem de temas tão importantes como liberdade, privacidade, manipulação midiática e domínio de massas.

Por último, vale registrar que 1984, logo após ser publicado, em 1949, teve ampla aceitação nos Estados Unidos como uma propaganda contra o regime Stalinista. Orwell, porém, não escreveu com este objetivo, mas sim como uma crítica a qualquer forma de regime totalitário. Sua obra é, acima de tudo, um alerta para percebermos o quanto nossa liberdade são de extrema importância e que, justamente por isso, devemos valorizá-la e defendê-la com toda nossa força.

Cena do filme 1984, com a teletela na parede

BÔNUS TIME

O que eu mais amei em 1984 foi, sem dúvidas, a escrita ácida, rica e primorosa de Orwell. Por isso, deixo aqui algumas das passagens que me chamaram a atenção pra demonstrar um pouco da minha experiência com essa leitura incrível!

“Claro, era possível imaginar uma sociedade na qual a riqueza, no sentido de bens e luxos pessoais, fosse distribuída equitativamente, enquanto o poder peranecia nas mãos de uma pequena casta privilegiada. Na prática, porém, uma sociedade desse tipo não poderia permanecer estável por muito tempo. Porque se lazer e segurança fossem desfrutados por todos igualmente, a grande massa de seres humanos que costuma ser embrutecida pela pobreza se alfabetizaria e aprenderia a pensar por si; e depois que isso acontecesse, mais cedo ou mais tarde essa massa se daria conta de que a minoria privilegiada não tinha função nenhuma e acabaria com ela. A longo termo, uma sociedade hierárquica só era possível num mundo de pobreza e ignorância.”

“Se o Partido era capaz de meter a mão no passado e afirmar que esta ou aquela ocorrência jamais acontecera — sem dúvida isso era mais aterrorizate do que a mera tortura ou a morte. […] E se todos os outros aceitassem a mentira imposta pelo Partido — se todos os registros contassem a mesma história — , a mentira tornava-se história e virava verdade. “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”, rezava o lema do Partido. E com tudo isso o passado, mesmo com sua natureza alterável, jamais fora alterado. Tudo o que fosse verdade agora fora verdade desde sempre, a vida toda. Muito simples. O indivíduo só precisava obter uma série interminável de vitórias sobre a própria memória.”

“[…] mas não era feita nenhuma tentativa de doutriná-los [os proletas] com a ideologia do Partido. Não era desejável que os proletas tivessem ideias políticas sólidas. Deles só se exigia um patriotismo primitivo, que podia ser invocado sempre que fosse necessário fazê-los aceitar horários de trabalho mais longos ou rações mais reduzidas. E mesmo quando eles ficavam insatisfeitos, como às vezes acontecia, sua insatisfação não levava a lugar nenhum, porque, desprovidos de ideias gerais como eram, só conseguiam fixar-se em queixas específicas e menores. Os grandes males invariavelmente escapavam a sua atenção.”

“De certa maneira, a visão de mundo do Partido era adotada com maior convicção entre as pessoas incapazes de entendê-la. Essas pessoas podiam ser levadas a acreditar nas violações mais flagrantes da realidade porque nunca entendiam por inteiro a enormidade do que se solicitava delas, e não estavam suficientemente interessadas nos acontecimentos público para perceber o que se passava. Graças ao fato de não entenderem, conservavam a saúde mental.”

“A guerra é uma forma de despedaçar, de projetar para a estratosfera ou de afundar nas profundezas do mar materiais que, não fosse isso, poderiam ser usados para conferir conforto excessivo às massas e, em consequência, a longo prazo, torná-las inteligentes demais.”

“Mas nenhum progresso na área da riqueza, nenhum refinamento da educação, nenhuma reforma ou revolução jamais serviram para que a igualdade entre os homens avançasse um milímetro que fosse. Do ponto de vista dos Baixos, nenhuma mudança histórica chegou a significar muito mais que uma alteração no nome de seus senhores.

“Ocorre uma certa dose de intercâmbio entre os dois planos do Partido, mas apenas o suficiente para garantir que os fracos sejam excluídos do Núcleo do Partido e os membros ambiciosos do Partido Exterior neutralizados em seu desejo de ascensão.”

“A essência da regra oligárquica não é a hereditariedade de pai para filho, mas a persistência de determinadas visão de mundo e de um certo estilo de vida impostos pelos mortos sobre os vivos. Um grupo dominante continua sendo um grupo dominante enquanto puder nomear seus sucessores. O Partido não está preocupado com a perpetuação de seu sangue, mas com a perpetuação de si mesmo. Não importa quem exerce o poder, contanto que a estrutura hierárquica permaneça imutável.”

“O passado é tudo aquilo a respeito do que há coincidência entre registros e memórias. Considerando que o Partido mantém absoluto controle sobre todos os registros e sobre todas as mentes de seus membros, decorre que o passado é tudo aquilo que o Partido decide que ele seja.”

Enfim, acho que deu pra compreender porque esse livro se tornou um clássico tão aclamado do século XX e como consegue discutir sobre tantos assuntos importantes ao mesmo tempo!

E você, ficou com vontade de ler? Já leu? Me conta nos comentários o que achou do post e do livro!

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Written by Luíza Cipriani

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