A Divina Comédia — Dante Alighieri | RESENHA
No começo deste ano me comprometi comigo mesma a ler pelo menos um livro relacionado com cada lugar que eu conhecesse daquele momento em diante. Logo em seguida, em julho, viajei à Itália e decidi que não há nenhum outro livro tão significante para a literatura italiana quanto A Divina Comédia, de Dante Alighieri.
Isso porque Dante foi a primeira pessoa a desafiar os costumes da época e escrever um livro em italiano, entre o ano de 1300 e 1320 (não se sabe precisamente). Até então, a língua latina era considerada a única capaz de exprimir os pensamentos mais nobres, enquanto a italiana era desprezada para a escrita.
“Dante criou a língua literária italiana. Dante criou a própria literatura italiana. A primeira grande obra da literatura italiana é, ao mesmo tempo, a maior obra da literatura italiana: é A Divina Comédia.” (Otto Maria Carpeaux)
Dante nasceu em 1265, em Florença, e foi muito envolvido na vida política da cidade, pela qual era apaixonado. Por causa de política, também, o poeta foi exilado para uma cidade italiana chamada Ravenna, onde faleceu, amargurado por estar longe de sua cidade querida, e se encontra enterrado até hoje.
O envolvimento de Dante na política florentina explica a enorme quantidade de referências políticas em sua obra, bem como menções de personalidades históricas, mitológicas, filosóficas. Além disso, Dante também faz MUITAS referências às tradições cristãs, retiradas principalmente da Bíblia (sobre a qual ter um bom conhecimento prévio auxilia bastante na compreensão da leitura!).
O maior exemplo disso é a própria estrutura da obra: tudo está baseado no número 3, em alusão à Divina (também chamada de Santíssima) Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo). Para contrapô-la, Dante se refere a Lúcifer como um monstro de 3 cabeças. Além disso, A divina comédia é dividida em 3 partes, das quais cada uma conta a jornada do personagem principal (o próprio Dante) por um “plano” do além-mundo: Inferno, Purgatório e Paraíso.
No Inferno, estão as almas pecadoras, recebendo castigos horríveis (dignos de serem chamados de “dantescos”, adjetivo aterrorizante que daí surgiu) relacionados a seus pecados, do mais brando para o mais grave: a traição, em cujo círculo se encontram personalidades como Judas (que traiu Jesus), Caim (que matou seu irmão) e Bruto (que matou Júlio César). A intenção, aqui, é fazer o leitor refletir sobre as terríveis consequências do que está praticando no mundo terreno, ao ver o sofrimento das almas neste plano.
No Purgatório, por sua vez, é onde se encontram as almas pecadoras que manifestaram remorso e, portanto, recebem a oportunidade de redimir seus pecados para possivelmente irem para o céu (Paraíso). É dividido em 7 níveis, correspondentes aos 7 pecados capitais.
Tanto durante a jornada pelo Inferno quanto pelo Purgatório, quem guia Dante é Virgílio, poeta da antiguidade e autor de Eneida. Nesta obra, Virgílio desce ao subterrâneo do mundo, talvez por isso justificando a escolha de Dante pela personagem.
A partir do Paraíso, porém, Dante passa a ser guiado por Beatriz, sua musa inspiradora, já que Virgílio é considerado pagão e, por isso, não entra no plano divino. Inclusive, todos os estudos indicam que Beatriz realmente existiu! Ela era vizinha de Dante em Florença, por quem o autor se apaixonou tão fortemente a ponto de torná-la sua guia pelo plano sagrado. Talvez não por coincidência, o nome Beatriz significa “geradora de beatitude”.
Aqui, é interessante notar que o Paraíso é dividido em níveis de planetas e estrelas (inclusive o Sol!), como se estivessem todos girando ao redor da Terra. Isso porque, devemos lembrar, na época de Dante a crença ainda era depositada na teoria geocêntrica.
Além da obra ser dividida em 3 planos, como já explicado, as referências ao número 3 em A Divina Comédia não param por aí. Cada “parte” (ou plano) é dividida em 33 cantos (também chamado de poemas), além do canto introdutório no primeiro livro (Inferno), e as três terminam com a mesma rima: stelle (que significa estrela). Não suficiente, cada plano é dividido em 9 círculos, que totalizam 27 e que, por sua vez, é igual a 3 elevado na 3ª potência! Muito louco né? E ainda não acabou!
Em cada estrofe há 3 versos, chamados tercetos. Estes versos se organizam de acordo com um método chamado terza rima, usado pela primeira vez por Dante Alighieri e que consiste em um sistema de rimas de três linhas entrelaçadas, na qual o verso do meio da primeira estrofe rima com o primeiro e o terceiro verso da estrofe seguinte, e assim sucessivamente. Exemplo:
A terza rima é um método dificílimo, que exige muito vocabulário e jogo de palavras, mas que tem como resultado uma obra com sonoridade admirável. Aliás, vale frisar que, justamente por causa dessa característica tão peculiar, A Divina Comédia, mais do que outros livros, perde muito com a tradução que, por melhor que seja, nunca será capaz de reproduzir a sonoridade, o ritmo e as rimas pensadas e escritas com tanto esplendor por Dante Alighieri. Portanto, se você souber ou estiver disposto a aprender italiano, recomendo muito que leia na língua original! Também cheguei a ver que existem edições bilíngues, que devem ajudar bastante.
A minha edição, apesar de não ser bilíngue, também achei ótima. É da editora Nova Fronteira e, além de uma ótima introdução escrita por Otto Maria Carpeaux, também tem “comentários” no final de cada canto que ajudam muito na compreensão da leitura e do contexto em que Dante viveu. Pra melhorar ainda mais, acho ela linda! É essa daqui:
Essa ilustração da capa, inclusive, é uma pintura de Agnolo Bronzino que hoje se encontra exposta na Galleria degli Uffizi, em Florença!
É válido ressaltar, ainda, que A Divina Comédia nem sempre se chamou assim. Na verdade, seu título original é apenas Comédia, em contraposição a uma tragédia pela presença de um final feliz. Foi somente em 1555 que Bocaccio passou a difundir a obra com o adjetivo agregado, fazendo referência tanto ao seu conteúdo espiritual/religioso quanto à sua grandiosidade.
Enfim, A Divina Comédia é um livro que recomendo fortemente a leitura e que me acrescentou muito. Antes, confesso que essa obra era um dos meus “medos literários”, pois não achava que eu seria capaz de ler. Porém, decidi enfrentar e valeu muito a pena, pela sua genialidade! É uma obra muito inteligente, que desenvolve nossa capacidade de leitura e entendimento e, mais do que isso, nos proporciona momentos de enorme aprendizado e reflexão. Não por acaso, o escritor americano T. S. Eliot a descreveu como “o ponto mais alto que a poesia já alcançou e jamais conseguirá alcançar”.