CASA DO TAMBOR DE CRIOULA — registro do patrimônio cultural maranhense

Luíza Cipriani
6 min readSep 26, 2023

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A Casa do Tambor de Crioula é parte de um conjunto de medidas de preservação do bem cultural, registrado como Patrimônio Cultural do Brasil, em 18 de junho de 2007. Visitei o local em junho de 2023 e, pela sua importância para a riquíssima cultura do Maranhão, não poderia deixar de registrar aqui o que aprendi por lá!

A casa

Localizada no Centro Histórico de São Luís, em sobrado tradicional representativo da arquitetura luso-brasileira no Maranhão, a Casa do Tambor de Crioula é um espaço de memória e documentação do bem cultural, que funciona como centro de pesquisa e difusão do Tambor de Crioula. Foi concebida como um Centro de Referência de uma expressão da cultura popular maranhense com forte influência da cultura africana que, no Brasil, mesclou-se com elementos do catolicismo popular, manifestado na devoção a São Benedito.

As obras de reabilitação do sobrado foram executadas com recursos do IPHAN, que considerou, na reforma, a adaptação do uso como um lugar onde os saberes do Tambor de Crioula possam ser reproduzidos e transmitidos.

O Tambor de Crioula

O Tambor de Crioula se destaca como uma das modalidades mais difundidas e ativas no cotidiano da capital e do interior do Estado, fazendo parte das atividades festivas, de sensibilidade musical e da definição da identidade cultural dos maranhenses.

Trata-se de uma forma de expressão de matriz afro-brasileira que envolve dança circular, canto e percussão de tambores, apresentando alguns traçoes que a aproximam do gênero samba: a polirritmia dos tambores, a sincope (frase rítmica característica do samba), os principais movimentos coreográficos e a umbigada. Esses traços são comuns a outras manifestações também.

Origens

As origens do Tambor de Crioula são mal identificadas. As referências iconográficas oitocentistas são suficientes apenas para reconhecer sua ancestralidade africana e sua prática por negros escravos ou libertos, nas manifestações de batuques para fins de divertimento.

A referência textual mais antiga, apontada pelo pesquisador Ferretti, é de 1818, da lavra de Frei Francisco de Nossa Senhora dos Prazeres: “para suavizar a sua triste condição fazem [os escravos], nos dias de guarda e suas vésperas, uma dança denominada batuque, porque nela utilizam uma espécie de tambor. Essa dança é acompanhada de uma desconcertada cantoria, que se ouve de longe”.

O reconhecimento do valor cultural do Tambor começa a se redefinir na década de 1970, quando ele passa a ser tratado como atração turística de São Luís.

Como acontece

Na roda, cantos, danças e devoções aos santos são ritmados pela sonoridade da parelha, composta por três tambores, com funções bem definidas: tambor grande ou refutador (responsável pelo solo e improvisos), meião ou socador (dá o ritmo contínuo, pulsação) e crivador ou pererenga (pequeno, fornece o contraponto). Todos são tocados com as mãos.

O meião e o crivador são assentados em um tronco no chão, lado a lado, e os tocadores sentam-se sobre eles, mantendo-os entre as pernas. O tambor grande é amarrado por uma corda na cintura e preso entre as pernas do tocador chefe, que permanece de pé.

A maioria dos grupos também utiliza a matraca, um par de pequenos pedaços de madeira batidos no corpo do tambor grande. Elas são executadas por tocadores que ficam agachados atrás do tambor grande. Nas cerimônias do Tambor de Crioula, há sempre um fogo aceso para afinar os instrumentos, momento que dá início ao ritual.

Matracas

Enquanto os tocadores fazem soar a parelha 3 tambores + matraca), os cantadores puxam toadas que são acompanhadas em coro. Conduzidas pelo ritmo incessante dos tambores e o influxo das toadas evocadas, as coreiras (dançarinas) dão passos miúdos e rodopiam. O ponto alto de sua performance é o movimento com que convida uma companheira para a dança, por meio de um toque de ventre com ventre, uma espécie de umbigada, que é chamada de punga.

Antigamente as roupas utilizadas eram das mais simples possíveis, dado o contexto rural em que as danças ocorriam. Recentemente, roupas mais uniformizadas e chamativas foram introduzidas ao Tambor de Crioula, de modo que as mulheres (coreiras) normalmente vestem saia de chitão florido e rodada, anágua por baixo das saias, blusa branca de renda com babado na gola, torso na cabeça e colares. Os homens usam calça, camisa de botão e chapéu de couro ou de palha.

Motivação dos festejos

A principal motivação dos festejos de tambor responde à obrigação religiosa. Nesse universo, a devoção não se restringe a São Benedito (padroeiro do Tambor de Crioula), mas também reverencia outras entidades cultuadas em casas de diferentes filiações religiosas.

O fato é que a ligação entre Tambor de Crioula, santos e entidades é mencionada em todos os grupos de Tambor, ainda que alguns brincantes participem dele principalmente pela festa e pela diversão.

Tambor de Crioula como patrimônio cultural

As toadas do Tambor de Crioula exemplificam o vasto repertório oral e musical do Maranhão e podem ser classificadas em diferentes temas como: a autoapresentação, reverências a santos e entidades protetoras, descrição de fatos, pessoas e lugares, recordações amorosas, etc. Elas elaboram e transmitem mensagens diversas, muitas vezes sob a forma de códigos e linguagens.

O inventário e o registro do Tambor de Crioula como patrimônio cultural brasileiro se inserem no processo mais amplo de rconhecimento e valorização não só dessa forma de expressão, mas do conjunto de tradições culturais de matriz africana que se desenvolveram no país.

Apresentação de grupo de Tambor de Crioula — Arraial do IPEM, junho/2023.

O registro do tambor de crioula se coaduna, em vários aspectos, com as diretrizes das políticas públicas de preservação do patrimônio cultural brasileiro.

Além dos elementos materiais e simbólicos que essa forma de expressão aciona em seus momentos de celebração, de trabalho, de diversão e de devoção, ela representa igualmente a resistência cultural dos negros africanos e seus descendentes no Maranhão.

Historicamente escravizados, espoliados e excluídos, os grupos negros que constituem a grande maioria dos brincantes têm no Tambor de Crioula um canal de atualização de memórias individuais e coletivas, de afirmação da identidade étnica e de reforço de vínculos sociais que favorecem a coesão entre as pessoas, o contato com o divino e a própria brincadeira como experiência constitutiva de seu modo de vida.

Hoje existem mais de 100 grupos de Tambor de Crioula registrados em São Luís que mantém essa tradição viva, presente principalmente nas periferias e passada de geração em geração.

“Eu tinha vontade,
eu tinha vontade que o povo que mexe com a cultura,
que dizem que são os representantes da cultura…
Que a cultura somos nós, que somos fazedores da arte.
Nós é que somos a cultura…
Que eles participassem da festa da gente,
que chegassem junto, para eles verem como é a festa da gente.”
Antônio Pacheco, Tambor Milagre de São Benedito.

A Casa do Tambor de Crioula oferece visitas guiadas e gratuitas de terça a domingo e, nas quartas, é palco de apresentações de grupos de Tambor.

Espero que você tenha gostado do post e, para qualquer dúvida, estou a disposição por aqui ou pelas outras redes sociais. Se quiser saber mais, me acompanhe no instagram (@wheresluiza), onde eu posto várias informações e dicas sobre a minha viagem ao Maranhão e muitas outras!

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Written by Luíza Cipriani

Viagens, livros e outras coisas mais. // 24, Florianópolis

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