Grande sertão: Veredas — João Guimarães Rosa | RESENHA + VISITA à casa do escritor
Publicado em 1956, Grande Sertão: Veredas é uma das mais renomadas obras da literatura brasileira e são inesgotáveis as razões para isso. O romance consiste em um relato do jagunço Riobaldo, já idoso, acerca de sua vida desde menino, passando por diversos causos, intrigas, amores e reflexões pelo sertão brasileiro.
Para melhor compreensão da obra, no entanto, é primordial conhecer um pouco da vida de seu próprio autor: João Guimarães Rosa, apelidado carinhosamente de Joãozito pelos íntimos.
SOBRE GUIMARÃES ROSA
Nascido em 27 de junho de 1908, na cidade mineira de Cordisburgo que, em uma mistura de latim e alemão significa algo próximo de “a cidade do coração”, de fato assim a foi para João Guimarães Rosa. A paixão pela sua terra natal é ainda hoje preservada através da transformação de sua casa em museu, com o nome do autor, em cuja entrada se lê:
O pai de Guimarães Rosa era juiz de paz, vereador e comerciante na região. Por isso, seu armazém era um ponto de encontro de tropeiros e viajantes, que desde cedo entusiasmavam o menino com suas aventuras e, mesmo sem saber, semeavam o cerne do que viria a se tornar obras de destaque da literatura nacional.
Aos 9 anos, João se mudou para Belo Horizonte com seus avós maternos, apesar de sempre voltar para Cordisburgo nas férias com a intenção de rever sua cidade-natal, seus amigos e outros familiares. Seu avô, de quem recebeu muita influência, foi professor, médico, escritor e filósofo, inclusive envolvendo João em saraus literários semanais que recebiam em sua residência grandes nomes das letras mineiras.
Desde cedo, João Guimarães Rosa foi leitor assíduo: frequentava a biblioteca pública de Belo Horizonte por horas a fio e alguns dizem que ele até levava lanches para não “perder tempo almoçando”.
“O homem nasceu para aprender, aprender tanto quanto a vida lhe permita.” — João Guimarães Rosa
Influenciado pelo avô médico, João foi aluno da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte (atual UFMG) e ao graduar-se decidiu abrir uma clínica na cidade de Taquara, onde ainda não havia presença desse tipo de profissional. Com isso, tornou-se muito querido na região, atendendo doentes a cavalo pelas fazendas e casebres.
Mais adiante, Guimarães Rosa estudou línguas estrangeiras e acabou optando por tomar o rumo da diplomacia. Para isso, foi morar no Rio de Janeiro e em seguida foi nomeado vice-cônsul em Hamburgo, na Alemanha. Conta-se que o escritor ajudou inúmeras vítimas do nazismo a fugirem do Brasil, assinando o visto em seus passaportes.
Desde menino, porém, Joãozito nutriu verdadeira paixão pelas histórias de jagunços. Apesar de nunca ter morado no sertão (apenas o visitou 2 vezes), pedia ao seu pai detalhes da vida nessa região e dizia que “o sertão está na cabeça”, ou seja, ele mesmo o inventava e o tornava cenário e personagem se suas obras.
“ O sertão é dentro da gente” — João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas
Antes de escrever Grande Sertão: Veredas, inclusive, João Guimarães Rosa realizou uma viagem de 10 dias pelo sertão, acompanhado de jagunços, boiadeiros e um pequeno caderninho, onde fazia anotações daquela linguagem e estilo de vida tão próprios da região. E foi justamente por essa característica, entre tantas outras peculiaridades, que as obras de Guimarães Rosa se tornaram grandiosas, cheias de neologismos, regionalismos e musicalidade (conta-se, inclusive, que o escritor pedia para sua filha ler suas obras em voz alta, para que ele pudesse sentir e aprovar a musicalidade de suas próprias frases).
Suas grandiosas obras o levaram a ser escolhido, por unanimidade, para a Academia Brasileira de Letras. Anos depois de ser convocado, decidiu tomar posse em 16 de novembro de 1967, exatos 3 dias antes de falecer subitamente por causa de um infarto.
SOBRE A OBRA
Agora que já sabemos quem foi Guimarães Rosa e o contexto em que viveu, é possível obtermos uma maior compreensão de sua obra Grande Sertão: Veredas.
Como já dito, Riobaldo, o narrador em primeira pessoa do livro, é um jagunço que se dispõe a relatar sua história de vida para um “doutor” que vem da cidade e resolve o entrevistar. Em primeira vista, se assemelha muito a um monólogo, apesar de não o ser, devido à presença de sinais sutis de que há um interlocutor, ainda que este não se manifeste diretamente. Somente nos é possibilitado conhecer que há alguém mais ali através de comentários do próprio Riobaldo, já que não há nenhuma fala direta além das suas.
“Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só fazer outras maiores perguntas” — João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas
Uma das primeiras peculiaridades a se notar no livro é que, como relato oral que é, não há divisão por capítulos. Por causa disso, também, é chamativa, logo de cara, a linguagem diferenciada, regional, rica em neologismos e sonoridades. Exemplo disso já pode ser percebido na primeira palavra da obra, que é “nonada” e significa, na verdade, “não é nada”.
Aliás, não dá pra falar de Grande Sertão: Veredas sem falar da linguagem empregada pelo autor, que é, para mim, o aspecto mais fascinante da obra. É um linguagem regional, com vocabulário e ortografia próprios, construídos a partir da língua falada, expressa oralmente. É fruto de uma cultura sertaneja que mistura palavras e sons, abrindo espaço para diversos neologismos e uma oralidade a partir da qual se recomenda, inclusive, que a obra seja lida em voz alta para sua melhor compreensão.
Esse aspecto tão ousado e particular da obra de Guimarães Rosa me fascina principalmente por ser, a linguagem, uma das maiores expressões da cultura de um povo e de uma região. Acho incrível o autor ter reconhecido isso a ponto de não abrir mão dessa linguagem tão própria em sua obra, ainda mais considerando seu pouco contato com isso e, ao mesmo tempo, um contato muito maior com a linguagem padrão culta devido à sua carreira, que muito se distanciava do estilo de linguagem jagunço.
Essa peculiaridade é, no entanto (e muito bem valorizada pelo autor), parte indispensável do sertão e crucial para a representação mais fidedigna possível do modo de vida e do cenário da região. Assim, a linguagem utilizada por Guimarães Rosa para escrever Grande Sertão: Veredas é, acima de tudo, uma forma de conhecer uma parte da cultura do nosso país, dominante nos sertões, região compreendida na obra principalmente entre as divisas de Minas Gerais, Bahia e Goiás.
Vale notar, ainda, que toda a história é fruto da memória de Riobaldo e, devido à nossa memória ser altamente manipulável, nunca se sabe quando ou quanto é verdade o que se está sendo contado.
Por causa disso, também, o tempo da história não é linear, mas sim vai e volta toda hora de acordo com a mente do narrador. Isso permite, entre outras coisas, inúmeros pensamentos por parte de Riobaldo que, apesar de ser jagunço e não ter tido amplo acesso ao estudo, se mostra capaz de reflexões extremamente profundas e desconcertantes. Riobaldo fala recorrentemente sobre Deus e o Diabo, muitas vezes questionando suas respectivas existências. Isso não se dá, no entanto, de forma maniqueísta, mas tudo se mistura em meio a múltiplos paradoxos. “Tudo é e não é”.
Um grande exemplo disso é o próprio título da obra: em meio ao grande sertão, se encontram as veredas, pequenas afluentes de água. De forma metafórica, o título representa ao mesmo tempo o cenário em que se passa a história e admite, desde o título, o vazio enorme e incompreensível com o qual vamos nos deparar e do qual só podemos conhecer pequenas partes (algumas veredas).
Outra manifestação destacável dos paradoxos que permeiam Grande sertão: Veredas é a presença do jagunço Reinaldo, chamado, por Riobaldo, de Diadorim — que significa a união de diabo e adorável dia em mim. É por ele que Riobaldo nutre uma profunda paixão, porém sem a poder manifestar já que seria inadmissível um relacionamento homossexual naquela época e, em especial, no contexto jagunço. É um amor que, pela sua “impossibilidade”, vemos se desenrolar pela história e com o qual sofremos juntos até o final, quando o grande segredo de Diadorim é revelado.
MUSEU CASA GUIMARÃES ROSA
Várias informações contidas neste post eu aprendi visitando o casa em que viveu Guimarães Rosa até os seus 9 anos de idade e que hoje é um museu em Cordisburgo.
A visita guiada pela casa é riquíssima, apresentando várias informações sobre a vida do autor e suas obras, assim como o contexto em que esteve inserido. Essa é, para mim, uma brilhante forma de nos identificarmos e relacionarmos de forma ainda mais especial com as obras de Guimarães Rosa, tornando a experiência de leitura ainda mais fascinante.
Os visitantes do Museu Casa Guimarães Rosa são muito bem recebidos por jovens cordisburguenses que fazem parte do Grupo de Contadores de Estórias Miguilim. Esse grupo dá vida ao museu e às obras do autor através da narração de seus textos, para o qual são preparados, durante anos, especificamente para difundirem oralmente a literatura rosiana, além de servir como incentivo para maiores aprofundamentos na nossa literatura e cultura. Não suficiente, tal dedicação significa também compartilhar a responsabilidade de preservação do patrimônio cultural de Cordisburgo.
Eu, particularmente, achei a iniciativa incrível, super adequada à transmissão oral pela qual João Guimarães Rosa tanto prezou. Além disso, os integrantes do grupo narram os trechos das obras de forma super emocionante, dignas de reconhecimento, especialmente devido à dificuldade do texto tanto em sua forma escrita quanto oral. Pra quem se interessar, é válido registrar que o grupo também viaja e faz apresentações em outros locais, basta entrar em contato com os coordenadores para combinar!
Ler Grande Sertão: Veredas foi, com certeza, uma experiência incrível, enriquecedora e gratificante, por tudo o que esta obra apresenta e representa. É uma livro que recomendo fortemente a leitura, principalmente para quem tiver interesse em conhecer mais sobre a linguagem e a cultura do sertão brasileiro como um todo, região com tanto a nos ensinar.
“O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando”. — João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas
Para quem quiser saber mais, recomendo muito uma pequena série de 4 vídeos produzida pela Guia do Estudante, com poucos minutos de duração cada um, que exploram a obra de João Guimarães Rosa e o cenário em que está inserida! É só clicar AQUI pra acessar.