MUSEU DA MEMÓRIA E DOS DIREITOS HUMANOS — Santiago, Chile

Luíza Cipriani
20 min readApr 23, 2024

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Em 1973 um golpe militar deu início à ditadura no Chile, uma das mais violentas já ocorridas no nosso continente. Hoje, a história desse período é registrada no Museu da Memória e Direitos Humanos, que fica em Santiago e cumpre com excelência o papel de difundir os horrores da ditadura, pra que nada disso seja esquecido e muito menos repetido — por isso, esse post é para compartilhar um pouco do que aprendi lá.

A visão geral do museu, marcado pela parede com as fotos de cada uma das 3.000 pessoas assassinadas pela ditadura chilena.

Sobre o museu

Inaugurado em 2010, o Museu da Memória e dos Direitos Humanos busca dar visibilidade às violações dos Direitos Humanos ocorridas no Chile entre 1973 e 1990, dignificar suas vítimas e estimular o debate e a reflexão em torno delas.

Além disso, destaca-se que o museu se baseia nos Relatórios das Comissões da Verdade, os quais são o referencial essencial de sua exposição permanente e de seu patrimônio. Esses relatórios foram elaborados pela Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação em 1990, pela Corporação Nacional de Reparação e Reconciliação entregue em 1996, pela Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura em 2004 e pelo Relatório da Comissão Presidencial Assessora para a Qualificação de Detidos Desaparecidos, Executados Políticos e Vítimas de Prisão Política em 2011.

Linha do tempo do dia do golpe (11/09/1973)

7:00: Em Santiago, tanques da carabineros começam a se dirigir ao Palácio de La Moneda e cercam a sede do governo pelas ruas Teatinos, Morande e Moneda.

7:30: O presidente Allende, acompanhado de sua guarda pessoal, chega ao La Moneda, que está cercado pelas tropas rebeldes. Neste momento, seus colaboradores mais próximos se juntam a ele, enquanto outros são detidos antes de entrar, pelos carabineros da Intendência.

7:55: Minutos após sua chegada, em seu primeiro discurso pelo rádio, Allende informa ao país sobre o levante da Marinha em Valparaíso. Ele faz um apelo ao povo para que permaneça alerta.

8:30: As rádios de oposição transmitem em cadeia a primeira proclamação das forças armadas, instando a renúncia do presidente Allende. Durante as próximas horas, agentes militares destroem os equipamentos da Rádio Nacional e invadem a estação da Universidade Técnica. As torres transmissoras das rádios Corporation e Portales são bombardeadas.

8:40: O Presidente Allende aparece no balcão do La Moneda e saúda um grupo de jovens. Será a última vez que é visto por seus seguidores.

9:00: Começam os primeiros disparos no confronto entre militares e carabineros, com atiradores posicionados nos prédios públicos ao redor do Palácio do Governo.

9:10: Allende fala pela última vez ao país através da Rádio Magallanes. Sabendo que este será seu último discurso, ele se despede com palavras emotivas para aqueles que o elegeram como presidente. Inclusive, o discurso é super emocionante e pode ser ouvido na íntegr aem um dos totens do museu. Também encontra-se disponível online.

Totem no qual é possível ouvir o último discurso proferido por Salvador Allende, de dentro do Palácio de La Moneda, no dia de sua morte.

10:00: Os tanques começam a disparar contra o La Moneda, enquanto a resistência vem do interior. Allende rejeita os apelos de rendição de Carvajal e a oferta de um avião para partir para o exílio. A guarda presidencial da carabineros abandona o Palácio. Apenas o general Sepúlveda, então diretor dos carabineros, permanece até minutos antes do bombardeio.

Entre 11:00 e 12:00: A pedido do presidente, um grupo de mulheres — incluindo suas filhas — e alguns funcionários do governo deixam o Palácio.

12:05: Duas aeronaves lançam mais de 20 bombas explosivas sobre o Palácio de Governo durante 15 minutos, iniciando um incêndio na ala norte, de frente para a rua Moneda. Em terra, as tropas lançam bombas lacrimogêneas no interior. Até então, o Palácio havia abrigado 23 presidentes desde 1845.

Entre 12:00 e 13:00: Confrontos na Universidade Técnica, indústrias e áreas residenciais resultam em dezenas de mortos e centenas de detidos. As embaixadas concedem asilo aos perseguidos.

Entre 13:00 e 14:00: Após o bombardeio, tropas militares sob o comando do general Palacios entram em La Moneda enquanto uma longa fila de detidos começa a deixar o local. No Salão Independência, no segundo andar, encontram o presidente Allende morto com uma metralhadora em suas mãos.

15.00: Um novo comunicado da Junta Militar ordena que 95 membros do governo e políticos da UP se entreguem em uma hora no Ministério da Defesa. Alguns colaboradores e guardas pessoais de Allende são levados para o regimento Tacna, de onde desaparecem para sempre.

16.00: Bombeiros chegam para controlar o incêndio em La Moneda, que só é extinto ao anoitecer. O corpo de Allende, coberto, é retirado por militares e levado ao Hospital Militar.

18.00: Começa o toque de recolher. Detidos de todo o país são levados para campos de prisioneiros improvisados em todo o Chile. Os focos de resistência foram esmagados e a Junta de Governo controla o território nacional.

Primeiros dias após o golpe

En meio ao golpe de 11 de setembro de 1973, é ordenado às pessoas que permaneçam em suas casas. A partir de então, a vida cotidiana é transformada de forma radical.

Desde as primeiras horas, surgem relatos de execuções, torturas, detenções, invasões individuais e em massa, intervenções em universidades e meios de comunicação, e proibição de qualquer tipo de reunião. Também é declarada a inabilitação de todas as organizações trabalhistas, como a CUT, organizações camponesas, estudantis, culturais, sindicais, profissionais, de moradores e até mesmo esportivas.

Com o poder das armas, a Junta de Governo impõe decretos-leis que prevalecem sobre as disposições garantidas na Constituição vigente desde 1925. É decretado Estado de Sítio em todo o território e estabelece-se que “deve ser entendido como estado ou tempo de guerra”. O toque de recolher é decretado, e os comandantes e chefes de zona são autorizados a emitir medidas e sanções através de editais militares, a realizar conselhos de guerra e a aplicar a Lei de Fuga para justificar as execuções.

A partir do dia do golpe, a repressão se torna massiva e indiscriminada. 68,57% das detenções reconhecidas posteriormente pela Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura ocorrem entre 11 de setembro e 31 de dezembro de 1973.

Em 1974, Augusto Pinochet é declarado “chefe supremo da nação”. No mesmo ano, forma-se a Direção de Inteligência Nacional (DINA), a polícia secreta da ditadura que realiza sequestros em massa, torturas, execuções e desaparecimentos. Após o atentado que seus agentes realizam em Washington, que resulta nas mortes de Orlando Letelier e da cidadã norte-americana Ronni Moffitt, os EUA pressionam pela dissolução da DINA. Em 1977, ela é substituída pela Central Nacional de Informações (CNI), principal responsável pelas violações dos direitos humanos desde então até março de 1990.

Cultura e censura

Após o Golpe de Estado de 1973, inicia-se um período marcado pela perseguição, repressão e censura. Desde os primeiros dias, é implementada uma política de proibição de livros, discos e cartazes com imagens e títulos considerados perigosos. Policiais e militares invadem lares, universidades e locais de trabalho em busca de motivos para interrogar ou deter pessoas.

Como forma de intimidar a comunidade, em 23 de setembro, nas Torres de San Borja, no centro da capital, os uniformizados destroem e queimam centenas de objetos culturais à vista de pessoas e meios de comunicação. Operações como essa se espalham por todo o país.

Parte da exibição que simboliza a queima de livros realizada pelo regime militar devido à censura imposta no país.

Tornam-se proibidos os impressos que possam estar associados a ideologias de esquerda ou ao governo da Unidade Popular; que falem de processos revolucionários ou transformações sociais; que contenham em suas capas termos como “marxismo” ou “proletariado”; até mesmo aqueles que mencionam “cubismo”. Discos de música do norte do país e de artistas comprometidos com o movimento da nova canção chilena também são eliminados.

Em resposta a essa extrema proibição da liberdade de pensamento e expressão, pessoas e instituições conseguem resguardar parte desses objetos de forma engenhosa e arriscada.

Fotografias, fitas de áudio e material fílmico são secretamente retirados do país; bibliotecários de universidades escondem em porões aquelas coleções que poderiam ser confiscadas ou queimadas; pessoas anônimas guardam seus pertences e as de seus próximos no sótão ou sob o solo, na esperança de salvá-los da destruição.

No entanto, apesar dos esforços para resistir à censura, os 17 anos de ditadura impactaram significativamente o acesso à cultura e a liberdade de expressão e opinião dos chilenos.

Perseguição da cultura popular

A partir do Golpe de 1973, inicia-se um processo que busca desintegrar parte da cultura popular e o amplo movimento artístico que vinha se desenvolvendo há décadas e que ganhou ainda mais força e abrangência social durante o governo de Salvador Allende. A ditadura corta abruptamente o direito à cultura, enquanto reprime brutalmente parte importante de seus expoentes.

Nesse sentido, centenas de artistas e pessoas ligadas a esse setor são vítimas de perseguição e repressão. Além da violência contra as pessoas, instituições culturais são destruídas e monitoradas, espetáculos são cancelados, universidades são intervencionadas, escolas de arte, cinema, música e teatro são fechadas, estudantes e professores são expulsos, e são proibidas produções culturais e artísticas dissidentes. Vários decretos e leis militares fazem referência direta ao campo cultural. Além de apresentar informações falsas para instilar medo na população, atacam a liberdade de expressão e justificam a violência.

Apesar de tudo, com dificuldade e poucas possibilidades de comunicação, algumas agrupações culturais conseguem se rearticular e novas surgem para construir estratégias coletivas de informação e criação, desafiando a ditadura e a ordem estabelecida.

Exílio

O Decreto Lei N° 81 de 6 de novembro de 1973 autoriza a Junta Militar a expulsar do Chile “determinadas pessoas” e proibir o retorno daqueles que deixaram o país. O exílio político é parte da estrutura repressiva da ditadura que, por meio de uma regulamentação arbitrária, determina quem constitui uma “ameaça potencial” e quem tem ou não o direito de viver no Chile.

Outras pessoas não são oficialmente expulsas, mas também são forçadas a deixar o Chile em busca de refúgio diante da perseguição e graves violações aos direitos humanos.

Embora não haja números exatos, centenas de milhares de pessoas são obrigadas à migração forçada e se dispersam pelos cinco continentes. Essa diáspora traz consigo uma ruptura psicológica e cultural que envolve desenraizamento, desintegração do núcleo familiar, perda de amizades, instabilidade emocional e econômica e a impossibilidade de planejar um projeto de vida. Muitas vezes, essas consequências persistem como um trauma e são revividas por aqueles que retornam do exílio para viver no Chile.

Caravana da Morte

Semanas após o golpe, o general Sergio Arellano Stark é nomeado “delegado especial” do comandante em chefe do Exército. Com uma comitiva de oficiais, Arellano percorre de sul a norte os centros de detenção, entre 30 de setembro e 22 de outubro de 1973. A passagem do helicóptero Puma, do Comando de Aviação do Exército, pelas cidades de Cauquenes, La Serena, Copiapó, Antofagasta e Calama resulta em 75 mortos, episódio que ficou conhecido como a Caravana da Morte.

Centros de prisão e tortura

A Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura recebeu milhares de testemunhos de prisioneiros políticos que, entre 11 de setembro de 1973 e 10 de março de 1990, foram torturados no Chile. Seus relatos permitiram a esta Comissão reunir informações sobre 1.132 locais utilizados como lugares de detenção nas treze regiões do país.

Foto de presos políticos no Estádio Nacional do Chile, que na época da ditadura foi utilizado como o maior centro de prisão e tortura do país. À direita, um mapa do estádio de acordo com sua utilização no período.

Estes se somaram a outros lugares identificados pela Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação e por investigações judiciais dos últimos anos. Os locais de detenção apresentam diferentes características, dependendo da época em que foram utilizados. Alguns eram para detenções em massa, como o Estádio Nacional, o Campo Chacabuco ou a Ilha Dawson; outros eram de incomunicabilidade, como Cuatro Alamos; e muitos eram secretos, como Londres 38, “o Palácio da Risa” ou o de Simón Bolívar. Na maioria deles, ocorreram torturas, e muitas das pessoas que entraram em suas instalações nunca mais foram vistas.

Como prisões, a ditadura usou edifícios públicos das Forças Armadas, de Carabineros, da Gendarmería ou da Investigaciones (navios, regimentos, delegacias, quartéis, cadeias, a Academia de Guerra Aérea, o hangar de Cerrillos). Campos improvisados de prisioneiros foram instalados em residências particulares, intendências, estádios, ginásios, ilhas, clínicas clandestinas, antigas instalações salitreras, balneários, indústrias, fazendas, hospitais, escolas secundárias e universidades.

Várias propriedades de apoiadores do governo deposto foram usurpadas e usadas como locais de tortura (Villa Grimaldi, o jornal Clarín, que foi chamado de La Firma, escritórios de partidos políticos). Além disso, aliados da ditadura ofereceram suas instalações para realizar essas práticas, como é o caso da Colônia Dignidad — tem até um filme que se passa nesse lugar.

De modo geral, os detidos enfrentavam acusações informais, sem julgamento ou devido processo legal, e, além dos locais usados como prisões sob estados de exceção, também as prisões recebiam prisioneiros políticos condenados por conselhos de guerra ou submetidos a processos.

Após torturas e interrogatórios, muitos prisioneiros políticos eram levados para lugares de difícil acesso, onde eram fuzilados e depois jogados em um rio ou tinham seus corpos ocultados. Alguns sobreviviam à execução e, feridos, conseguiam nadar até a margem do rio ou sair de uma vala e escapar. Daí em diante, eles passavam a procurar alguém que os ajudasse, para que, assim, pudessem contar suas histórias e as de seus companheiros.

Nesse sentido, um caso se tornou especialmente emblemático no Chile. Durante a Greve Nacional de 2 de julho de 1986, uma patrulha militar captura dois jovens na área de General Velásquez, em Santiago: o fotógrafo Rodrigo Rojas (19 anos) e a estudante de engenharia civil elétrica Carmen Gloria Quintana (18 anos), e eles são incendiados. Em seguida, são abandonados em um caminho em Quilicura. Devido às queimaduras graves, Rodrigo morre em 6 de julho. Carmen Gloria sobrevive com 60% do corpo queimado e passa por várias cirurgias e tratamentos prolongados, além de percorrer organizações internacionais denunciando a situação de violações a direitos humanos no seu país em busca de apoio para o fim do regime.

Carmen Gloria e Rodrigo Rojas, vítimas da crueldade do regime militar chileno.

Vítimas

Uma lista de vítimas não é apenas uma série de nomes. Por trás de cada nome está uma experiência gravada na memória da sociedade: essas pessoas sofreram tratamentos cruéis e desumanos por parte do Estado de seu próprio país. Sem julgamento, condenação ou devido processo legal, sua dignidade e direitos civis foram ignorados. Portanto, mais do que falar de números de torturados e mortos, o que o museu busca é dar personalidades a esses números, exatamente o contrário do praticado pelo regime de Pinochet.

Por trás dos 38.254 integrantes da lista de vítimas de violências causadas pela ditadura chilena, estão histórias de vidas destroçadas, projetos políticos interrompidos e a impotência diante da impossibilidade de proporcionar uma vida melhor para seus filhos. No entanto, esta também é uma história de resistência diante da adversidade e de conquistas pessoais e coletivas. Entre estas últimas, está a criação da Comissão Nacional de Prisão Política e Tortura, um ato de reparação às vítimas e um sinal de esperança para o país.

A lista das vítimas é elaborada a partir da revisão detalhada dos testemunhos recebidos. Há vítimas que não se apresentam, pois lembrar é reviver a dor. Portanto, o total daqueles que sofreram prisão política e tortura ultrapassa esse registro.

Mulheres Presas

Depois de serem sequestradas, os relatos contam que as presas mulheres eram geralmente vítimas de ameaças e insultos, espancamentos com os olhos vendados, humilhações e, além disso, de agressão e violência sexual. Especialmente dramático é o caso de 229 mulheres detidas estando grávidas, documentado pela Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura (Comissão Valech). Dentre essas, algumas deram à luz na prisão ou abortaram devido às torturas.

Outras engravidavam como resultado de estupros perpetrados durante o cativeiro. Outras dez foram detidas grávidas e até agora não se conhece o destino delas e de seus filhos.

Esses relatos mostram a ocorrência de um tipo específico de violência sistemática que ataca os corpos femininos sexualmente e que faz parte de um projeto institucional organizado que busca subjugar, desarticular e eliminar as pessoas opositoras.

A grande maioria das 3.400 mulheres que depuseram perante a Comissão Valech denunciou ter sido vítima desse tipo de violência por parte dos órgãos repressivos do estado.

Em 1998, a Corte Penal Internacional reconheceu que isso pode ser considerado um crime contra a humanidade. As sobreviventes no Chile têm lutado para que no país seja estabelecida essa diferenciação jurídica e sua natureza distintiva — não apenas como mais uma forma de tortura — para que seja reconhecida a natureza histórica patriarcal dessa violência onde o masculino se impõe, subjuga e oprime o feminino.

A violência política sexual é uma das formas mais graves de repressão, pois o objetivo central é afetar a sexualidade das vítimas e degradá-las ideológica e moralmente. Além disso, tem consequências emocionais, físicas e sociais tanto imediatas quanto a longo prazo.

Crianças

As Comissões de Verdade identificaram 153 pessoas menores de idade como executadas políticas ou mortas em protestos, 40 desaparecidas após serem detidas e 2.200 presas políticas e torturadas.

Parte da exposição que trata sobre as crianças vítimas das violências da ditadura chilena.

As formas variadas de violência passaram pelos olhos de meninas e meninos: mães e pais desaparecidos e executados; a experiência do exílio e da deslocalização junto com suas famílias; pessoas estranhas e armadas entrando violentamente em suas casas; visitas prolongadas a prisões para encontrar familiares e a violência direta que os transformou em pessoas detidas, mortas ou desaparecidas.

Desaparecidos

Centenas de pessoas sequestradas ou detidas nunca mais foram vistas. Quando suas famílias perguntavam sobre seu paradeiro, os militares respondiam que não estvam mais ali, que foram libertadas, que foram levadas para outro lugar, e a incerteza dava lugar a uma terrível certeza. Os organismos de direitos humanos, como o Comitê Pro Paz, acumularam evidências e começaram a compreender que esses casos fizeram parte de uma política sistemática: os desaparecimentos.

O Governo Militar negou, em um relatório apresentado às Nações Unidas, a realidade dos detidos desaparecidos e, em alguns casos, até a existência legal dessas pessoas.

Em dezembro de 1978, foram encontrados os restos de 15 camponeses nos fornos de cal da mina de Lonquén, que foram detidos em 7 de outubro de 1973 por carabineiros. Em março de 1980, esses fornos foram dinamitados para ocultar os vestígios do que aconteceu.

Não há registro dos restos de Marta Ugarte (42 anos), que, após ser detida em 9 de agosto de 1976, sofreu brutais torturas na Villa Grimaldi. Transportada para Peldehue em um helicóptero, junto com outros corpos, foi lançada ao mar. Em 9 de setembro de 1976, seu cadáver semi-nu e com arame amarrado ao pescoço é encontrado na praia La Ballena, em Los Molles. Na ocasião, os militares tentaram fazer parecer que foi um crime passional.

Os achados de ossadas em Lonquén, Yumbel e Mulchén renovaram a esperança. No entanto, o Estado não reconheceu os sequestros, inumações ou exumações ilegais. Operações de desinformação foram montadas, restos foram removidos, mudados de lugar e corpos foram lançados ao oceano.

Apesar da manobra de exumação ilegal, conhecida como “operação retirada de televisores”, os militares não conseguiram esconder os crimes. Os familiares e suas associações persistem até hoje na busca, sujeitos a essa nova dor.

A natureza dos crimes perpetrados e o esforço do regime para eliminar as vítimas com o propósito de intimidar e consagrar a impunidade deixaram rastros: evidências ósseas altamente degradadas, pequenas e fragmentadas, o que dificultou a identificação das vítimas da ditadura e hoje representa um grande desafio para diversas disciplinas forenses.

A partir dos anos 90, novos achados são feitos em locais como Pisagua, Calama, Tocopilla, La Serena, Patio 29, Fuerte Arteaga, Chihuío, Cuesta Barriga e muitos outros, alguns ainda em processo de identificação. Em 2007, é criado o Programa de Direitos Humanos do Serviço Médico Legal (SML), como expressão da vontade governamental de garantir o direito a um sepultamento digno, o acesso à verdade e a identificação das vítimas no contexto das investigações judiciais.

Montagens da imprensa

O regime desdobra, de forma sistemática, operações de desinformação destinadas a ocultar as violações aos direitos humanos. Fazendo uso do controle que exerce sobre os meios de comunicação, organiza montagens que visam desviar a atenção de seus crimes.

Também utiliza as tribunas internacionais da ONU e da OEA para propagar versões falsas. Atribui sequestros e desaparecimentos forçados a infidelidades, desentendimentos entre militantes, confrontos armados ou eventos criminosos ocorridos no exterior. Além de encobrir seus abusos, busca desconcertar, humilhar e desmoralizar aqueles que defendem os direitos das vítimas e denunciam as violências cometidas.

Nova Constituição

Em 24 de setembro de 1973, uma comissão foi reunida para preparar um anteprojeto que substituísse a Constituição de 1925. Presidida por Enrique Ortúzar e composta por outros professores de direito, o documento elaborado por eles foi modificado posteriormente pelo Conselho de Estado, presidido pelo ex-presidente Jorge Alessandri. Em julho de 1980, a Junta e um grupo de trabalho de oito membros composto por ministros e auditores das fileiras militares modificaram esse texto e apresentaram a Constituição de 1980.

Em 1980, a ditadura convoca um plebiscito que não conta com registros eleitorais nem mínimas condições de transparência, liberdade e informação, para aprovar uma Constituição redigida seis anos antes por uma comissão de sua confiança. As opções “Sim” ou “Não” são votadas, e o processo ocorre sem contar com Registros Eleitorais. A votação é realizada em qualquer local e é necessário apenas o cartão de identidade, mesmo que vencido. O “Sim” ganha com 65,71% dos votos.

Cartão de votação do plebiscito para nova constituição, cuja simbologia induz o eleitor a votar no “Sim”, representado pela bandeira chilena, em oposição ao “Não”, representado por um retângulo escuro.

O novo texto constitucional estabelecia mecanismos que impediam sua modificação, instituindo um modelo que privilegiava as condições de mercado e não garantia direitos sociais fundamentais.

Além disso, os cargos de senadores designados são incorporados ao Parlamento, e o Conselho de Segurança Nacional é criado. Essa Constituição estabelece um cronograma para a transição, permitindo que o general Augusto Pinochet permaneça no poder, seja como presidente ou senador.

Atentado a Pinochet

Em 7 de setembro de 1986, o general Augusto Pinochet viaja de sua residência no Cajón del Maipo em direção a Santiago, escoltado por cinco veículos. Às 18h35, na estrada que liga El Melocotón a La Florida, um grupo do Frente Patriótico Manuel Rodríguez (FPMR) abre fogo contra a caravana.

Cinco guarda-costas morrem: os cabos de primeiro escalão do Exército, Miguel Ángel Guerrero Guzmán (28 anos), Cardenio Hernández Cubillos (32 anos) e Gerardo Rebolledo Cisternas (30 anos), o cabo de segundo escalão. Pinochet sai ileso do ocorrido.

Plebiscito

Por volta de 1988, a ditadura de Pinochet permanece no poder apesar dos amplos setores mobilizados pelo retorno à democracia. As manifestações civis abrem caminho para conquistas importantes, como o término do Estado de Sítio e o levantamento da restrição ao direito de reunião. Desde 1983, começam a ser publicadas listas de exilados autorizados a retornar ao país, até que em 1º de setembro de 1988, é conhecida a última lista de pessoas autorizadas a retornar. No exterior, o fim da Guerra Fria se aproxima, as ditaduras latino-americanas caem ou estão enfraquecidas, e a comunidade internacional exige o fim dos abusos à dignidade humana.

Nas disposições transitórias da Constituição de 1980, estabelece-se que em 1988 deve ocorrer um plebiscito para que a sociedade chilena decida se prolongará o regime por mais 8 anos (opção “Sim”), e, caso o voto “NÃO” prevaleça — uma alternativa que a junta não considerava possível — , Pinochet continuaria como chefe supremo do regime por mais um ano. Assim, em 1989, haveria eleições conjuntas para presidente e parlamento, mantendo um conselho de segurança nacional controlado pelos líderes máximos das Forças Armadas e dos Carabineros, além de um Congresso onde os partidos políticos, considerados fora da lei, estavam excluídos.

Em fevereiro de 1987, os registros de votação são reabertos, pois os originais haviam sido queimados após o Golpe, e em abril de 1988 é promulgada a Lei Orgânica Constitucional sobre Votações Populares e Apuração. Os partidos e movimentos de oposição debatem-se entre se retirar do processo ou participar para tentar alcançar a vitória do “NÃO”. As dúvidas fundamentam-se na experiência dos dois plebiscitos organizados anteriormente pela ditadura, nos quais foram violadas as garantias mínimas de uma votação democrática.

A oposição exige eleições livres em vez de um plebiscito, mas diante do cenário forçado do plebiscito, a ideia de mobilizar os setores democráticos para votar “NÃO” e exercer um controle cidadão sobre as votações ganha força. O primeiro passo é superar o medo e a desconfiança para conseguir que a população se inscreva amplamente nos registros eleitorais. À medida que o plebiscito se aproxima, todos os partidos de oposição, os principais movimentos sociais e o mundo da cultura se unem em torno do “NÃO” e mobilizam-se por todo o país para incentivar a votação e garantir a transparência do processo.

Muitos duvidam que este novo plebiscito seja uma possibilidade real de encerrar a ditadura. A desconfiança, incerteza e medo permanecem latentes em todo o processo até as urnas. Apesar disso, treze organizações opositoras concordam em convocar o voto “NÃO” no plebiscito e formam a Concentração de Partidos pela Democracia.

Os objetivos dessa comissão eram:

  • Inscrever-se em massa nos registros eleitorais;
  • Legalizar partidos políticos que possam credenciar representantes nas mesas de votação;
  • Treinar representantes para evitar fraudes eleitorais durante a recepção e apuração dos votos;
  • Organizar um sistema de contagem paralela nos locais de votação em todas as comunas e regiões do país;
  • Realizar uma campanha educativa e comunicacional a favor do voto “NÃO”.

No outro lado, o general Augusto Pinochet é designado pelos comandantes em chefe das forças armadas como candidato único para representar o oficialismo na consulta popular.

O Tribunal Eleitoral ordena que o “Sim” e o “NÃO” tenham acesso gratuito a 15 minutos diários de transmissão nacional de televisão no mês anterior ao plebiscito. A propaganda política estreia às 11h da noite de 4 de setembro e alcança uma audiência histórica.

Como resultado do esforço coletivo e cidadão, 92,1% dos maiores de 18 anos (7.435.913 pessoas) se inscrevem nos registros eleitorais. Era a primeira vez em 14 anos que os registros eleitorais eram abertos, e pelo menos 1/3 dos inscritos votaria pela primeira vez na vida.

Além disso, nos dias anteriores à votação destinada a definir o futuro da democracia no Chile, os agentes de inteligência americanos obtêm informações detalhadas sobre os planos do ditador na noite do plebiscito. Ele pretende declarar estado de emergência e anular a eleição para manter-se no poder. No entanto, ele não contava com um fator variável: os oficiais chilenos de alto escalão se opõem.

Apuração de votos

Após o plebiscito, mais de 60.000 pessoas participam da apuração paralela de votos liderada pela oposição.

Cartão de votação no plebiscito de 1988.

Um sistema de coleta de informações é projetado em cada uma das 22.267 mesas de votação em todo o país. Devido à necessidade de obter os dados rapidamente, são utilizados carros, bicicletas, barcos e outros meios de transporte para movimentar as cédulas para os centros de apuração e reenviá-las por fax para quatro centros de coleta em Santiago, localizados em instalações ligadas às igrejas, casas e escritórios de membros da oposição ao regime.

A vitória do NÃO

O resultado das urnas apurou que o a maioria do povo chileno votou pelo fim da ditadura, isto é, NÃO à continuidade do governo do Pinochet, ainda que por uma margem apertada (44,01% para o SIM e 55,99% para o NÃO). Assim, chegou ao fim o período mais sombrio da história chilena.

Após o plebiscito, a Concentração de Partidos pela Democracia, composta na época por dezessete movimentos políticos contrários à ditadura, após muita negociação interna escolheu como candidato a futuro presidente Patricio Aylwin. Hernán Büchi representou o pacto Democracia e Progresso e o partido Democracia Radical, sob o lema “Büchi é o homem”. O empresário Francisco Javier Errázuriz levou adiante sua candidatura presidencial à margem dos partidos políticos.

A eleição ocorreu em 14 de dezembro de 1989 no Chile, dando início a um novo período na história do país — agora, democrático, ainda que com profundas marcas e feridas do passado autoritário.

Cartazes de apoio internacional ao fim da ditadura chilena.

Sobre a visita ao museu

A quantidade de informações registradas acima certamente mostram o quanto eu aprendi no museu, que é realmente excelente, muito didático ao mesmo tempo que consegue ser interativo e interessante.

A entrad no museu é gratuita e tem visita guiada — que eu recomendo MUITO! Fizemos com a guia Martina, super queria e didática!

Depois ainda ficamos mais algumas horas no museu absorvendo as informações por conta própria. O museu é ENORME e tem muito conteúdo! Por isso, recomendo que você separe em torno de 3 a 4 horas para a visita, especialmente se gosta de história como eu!

Esse é, sem dúvidas, um local que não pode ficar de fora do seu roteiro em Santiago.

Espero que você tenha gostado do post e, para qualquer dúvida, estou a disposição por aqui ou pelas outras redes sociais. Não esquece de compartilhar esse post com alguém que também vai achar essa história interessante e, se quiser saber mais, me acompanhe no instagram (@wheresluiza), onde eu posto várias informações e dicas sobre a minha viagem ao Chile e muitas outras!

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Written by Luíza Cipriani

Viagens, livros e outras coisas mais. // 24, Florianópolis

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