O Brasil que a nossa realidade privilegiada não conhece
Relato da visita à comunidade ribeirinha São José, no interior do Amazonas
Tive a oportunidade de visitar o Amazonas — estado onde 80% da população vive na margem dos rios, vale lembrar — e fiquei hospedada em uma pousada dentro de uma reserva de desenvolvimento sustentável chamada Reserva Mamirauá. Lá existem diversas comunidades ribeirinhas que trabalham em sistema de rodízio na pousada, como forma principal de suprimento financeiro. Um dos passeios que são oferecidos pela pousada é a visita de uma das comunidades, guiada por um dos próprios funcionários da pousada que vive naquela comunidade.
Vale ressaltar que a visita a essas comunidades também é feita em rodízio, ou seja, cada comunidade só recebe visita dos turistas de tempos em tempos, para não afetar a rotina local. Além disso, achei lindo ver como eles gostam de nos mostrar e explicar o dia-a-dia deles, com muito orgulho e sempre nos incentivando à preservação da natureza.
Contexto geográfico: para chegar na Reserva Mamirauá, saindo de Manaus, leva cerca de 1h hora de avião ou 3 dias de barco regional (Manaus-Tefé), mais 10 minutos do aeroporto até o porto de Tefé e, por último, cerca de 1h de barco até a Reserva. Não é pouca coisa.
Comunidade São José
A comunidade ribeirinha São José foi fundada em 1949 por José Laurino. Antes disso todo mundo vivia separado, em casas isoladas com sua família. Foi em 1983 que passou pela região um padre chamado Irmão Falcon, sugerindo que os habitantes daquela região se unissem. Todos viram que haveria benefícios em se unirem, como receber apoio do governo e criar uma identidade cultural, então assim o fizeram.
Hoje em dia, graças à ideia de união sugerida pelo padre, a comunidade já tem presidente, vice-presidente e outros cargos para administrar o local e a vida das pessoas que ali vivem. São eles que vão até a cidade mais próxima para pedir ao governo auxílio, recursos e melhorias na qualidade de vida. Um dos auxílios proporcionados pelo governo em parceria com a Prefeitura Municipal da cidade mais próxima e que foi muito importante, por exemplo, foi a instalação de geradores de energia elétrica para a comunidade, que até então não tinha acesso à eletricidade.
Segundo um dos moradores, quem mais ajuda a comunidade é a FAS (Fundação Amazônia Sustentável), cedendo barcos a motor, materiais para as construções flutuantes, máquina processadora de açaí (colhido ali mesmo), entre outros produtos de necessidade local.
Além disso, os moradores vivem principalmente da pesca, da agricultura e do dinheiro recebido pelos serviços na pousada.
Agricultura
Até 2009, conta um dos moradores, o rio não costumava encher tanto quanto hoje em dia. De alguns anos para cá, porém, a cheia virou um problema para a agricultura, principalmente para o cultivo da mandioca.
Durante a estação seca, por ter mais espaço para plantio, os moradores da comunidade conseguem plantar o suficiente para consumo e venda, mas na cheia conseguem apenas a quantidade suficiente para consumo, já que sobra pouco espaço de terra disponível para a agricultura.
Quando a terra seca, depois da temporada de cheia, todos os moradores se unem em um mutirão chamado “ajuri” para limpar a área escolhida para as futuras plantações, ateiam fogo para preparar o solo e só então podem começar a plantar. Entre alguns dos principais produtos cultivados na comunidade estão a melancia, a banana e o milho. As plantações também são comunitárias.
Outro artigo da agricultura muito usado pelos moradores locais é a chamada “cuia”. O fruto em forma arredondada tem uma resina interna que é retirada para que, assim, a casca possa ser utilizada como tigela para comer tacacá (prato típico da região), açaí, sopa e até mesmo pra fazer abajures.
Pesca
Antes da criação da Reserva Mamirauá, grandes barcos pesqueiros podiam explorar a área que hoje é protegida. Agora, a pesca dentro da Reserva é regulamentada e limitada. Por isso, os moradores não podem pescar na reserva inteira, mas somente em alguns locais e épocas estabelecidos.
Sendo assim, já que a pesca é um dos principais meios de sustento da comunidade (tanto para alimentação quanto para comercialização em cidades próximas) e também é limitada para a proteção da natureza, na época de reprodução dos peixes os moradores recebem seguro-desemprego. Em outras épocas do ano em que a pesca também fica extremamente limitada, é importantíssimo o auxílio recebido pelos programas de bolsa-família e bolsa-selva.
Vale lembrar que essas formas de auxílio contribuem para a ideia de desenvolvimento sustentável proposto pela Reserva, na qual os seres humanos e a natureza podem conviver plenamente sem que nenhuma das duas partes seja agressivamente prejudicada.
Pousada
A maioria dos moradores das comunidades da Reserva Mamirauá trabalham na Pousada Uacari como guias, cozinheiros, camareiras, e entre outras funções que possam lhes proporcionar sustento além da pesca e da agricultura. Os serviços na pousada são distribuídos em sistema de rodízio entre as comunidades locais que é organizado pelos próprios moradores.
Além disso, a pousada é importante na medida em que parte do dinheiro cobrado dos turistas pela hospedagem vai para as comunidades em forma de projetos, normalmente administrados pelo Instituto Mamirauá. Um dos projetos foi a implantação de antena telefônica na comunidade, que hoje já conta com duas operadoras disponíveis.
Cheias
As casas da Comunidade São José são, em sua maioria, adaptadas para as épocas de cheia. Elas são construídas de modo a possibilitar que, a medida que a água do rio for subindo, o chão das casas pode ser removido e levantado. Porém, quando a enchente é muito alta, o chão é levantado até chegar em um ponto que só da para engatinhar dentro de casa, saindo da janela direto para a canoa.
Durante essa época do ano, algumas pessoas, quando podem, se mudam para uma das cidades próximas, já que fica extremamente difícil permanecer por cerca de 3 meses nestas condições em meio à cheias, especialmente para garantir a segurança das crianças pequenas contra afogamentos ou possíveis acidentes.
As duas maiores cheias já registradas na região foram as de 2012 e a de 2015, sendo esta a maior de todas as registradas em muito tempo.
Educação
A escola da comunidade São José funciona há mais de 15 anos e é responsável pela educação de jovens e adultos locais. Lá trabalham dois professores: um morador da comunidade local (que leciona do infantil até o 5º ano) e um que vem de outra comunidade para ensinar do 6º ao 9º ano.
Depois do 9º ano, a educação a nível de ensino médio se dá a distância, por meio da televisão disponível em uma comunidade próxima (comunidade Boca do Mamirauá) ou, mais dificilmente, em Manaus.
Entre os meses de maio, abril e junho não tem aula na escola da comunidade devido à cheia. No final do mês de julho, quando as aulas retornam, as aulas perdidas são recuperadas aos sábados, chamados “sábados letivos”.
Casamento e novos moradores
É comum que pessoas da comunidade São José se casem com pessoas de outras comunidades. Nesses casos, os casais costumam se conhecer em partidas de futebol disputadas entre as comunidades ou em festas de padroeiros (cada comunidade dispõe de um). Depois de um tepo, naturalmente costumam casar e ir morar juntos.
Porém, se alguém quiser passar a morar na comunidade São José, deve conversar com a administração. Se permitido, o novo morador fica em observação por um período de 6 meses. Só então lhe é permitido morar ali definitivamente. Caso contrário, é expulso da comunidade. vir morar aqui, eles falam com a administraçao e a pessoa mora aqui em um periodo de 6 meses sob observaçao. Se nada acontecer, podem continuar vivendo aqui. Se nao for um bom morador, é expulso da comunidade.
Foi uma experiência incrível conhecer de perto uma rotina tão diferente da minha. Acho que é só saindo da nossa zona de conforto e estando abertos a novos pontos de vista que podemos desenvolver a empatia e valorizar nossos privilégios. Gratidão é o que eu sinto por poder conhecer esse outro lado do Brasil, porque a gente tem que conhecer o nosso país!