Os miseráveis — Victor Hugo | RESENHA
“Enquanto, por efeito de leis e costumes, houver proscrição social, forçando a existência, em plena civilização, de verdadeiros infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade,um destino por natureza divino; enquanto os três problemas do século — a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela ignorância — não forem resolvidos; enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social; em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis.”
É com essa BOMBA que já começa Os Miseráveis. Volte no parágrafo de cima e leia com calma. Repare na profundidade e riqueza de cada palavra. E é assim o livro todo! Não a toa, essa é a obra prima de Victor Hugo, grandiosíssima, não apenas pelo seu tamanho (1510 páginas na edição brasileira da Martin Claret), mas por todo o seu conteúdo e reflexões que proporciona.
SOBRE A OBRA
A história se passa entre os anos de 1815 e 1832 e é contada por um narrador-observador que de tudo sabe, que também opina, reflete e conversa com o leitor. Apesar dos diversos debates acerca de quem seria o protagonista do romance (Cosette, os pobres, a sociedade ou até mesmo a lei), este se desenrola a partir da figura de Jean Valjean, condenado a 19 anos de trabalho forçado após o roubo de um pão e sucessivas tentativas de fuga.
É tendo esse acontecimento como ponto de partida que Victor Hugo apresenta contundentes críticas ao direito e sobre ele nos faz refletir. Em plena França do século XIX, berço da então nova razão baseada em códigos, o autor denuncia suas falhas, especialmente quanto às suas frias consequências e desproporcionalidade. A partir da contradição entre as figuras de Jean Valjean e do inspetor Javert, Hugo questiona, ao longo da história, a relação entre lei — como aparato estatal e burguês — e justiça. Para quem gostar da área e quiser se aprofundar sobre sua abordagem em Os Miseráveis, recomendo fortemente a leitura deste excelente artigo.
Outra coisa que me chamou bastante atenção sobre a obra é a imensa quantidade de referências históricas e culturais apresentadas, o que enriquece muito a narrativa! Aprendemos muito sobre a batalha de Waterloo e sobre os motins de 1832 em Paris; diversas vezes deparamo-nos com referências à Dante Alighieri, Virgílio, personalidades políticas e muito mais, proporcionados pelo vasto conhecimento e experiência que Victor Hugo cultivava: só para se ter uma ideia, quando Os Miseráveis foi lançado, em 1862, o autor completava 60 anos de idade, já tinha sido deputado, senador e vivido no exílio por desavenças políticas.
“Além de influente político em seu tempo, dedicou-se ao teatro, à poesia, ao romance e ao gênero memorialístico. Ele também tinha talento para o desenho e a pintura. Tratava-se de um homem erudito e profundo conhecedor da história de seu país; respeitado também como crítico literário, e que se tornou porta-voz dos escritores românticos.” — CHAUVIN, 2014
Além disso, é impossível não registrar o brilhantismo de Hugo ao nos apresentar as personagens, sempre muito bem construídas e descritas, fazendo com que nos envolvamos profundamente com a obra. Aliás, sua escrita é infinitamente elogiável. É forte, precisa, rica e emocionante, nos levando a sofrer e comemorar junto com as personagens da trama. Como se não bastasse, sua escrita maravilhosa nos proporciona inúmeras reflexões, a todo momento, que possibilitam a abordagem de diferentes assuntos e áreas de estudo. Com tudo isso, a leitura se torna tão deliciosa que não dá vontade de parar, e juro que as 1510 páginas passam voando!
Pra mim, o único defeito da obra é seu cunho explicitamente machista em diversas passagens, mesmo sabendo-se que Victor Hugo lutou politicamente por direitos femininos. Apesar de eu ter achado todos os outros aspectos da obra admiráveis, também acho que este ponto não pode deixar de ser notado e apontado.
Os miseráveis no Brasil
Os Miseráveis chegou no Brasil recém independente, com fortes influências francesas e ideais libertários, e aqui encontrou solo fértil para se propagar entre os intelectuais da época. Sabe-se que escritores como José de Alencar, Castro Alves e Machado de Assis, considerado o maior da literatura brasileira, foram fortemente influenciados pela obra. Este último, inclusive, chegou até a traduzir diversas obras de Victor Hugo para o português!
Sobre a minha edição
Para ler um livro grande, considero fundamental que a edição seja boa, pois, caso contrário, isso pode ajudar a tornar a leitura cansativa. Por isso, quero recomendar aqui a edição que eu tenho, da editora Martin Claret, que achei perfeita! Além de linda, é confortável para a leitura. Mais importante do que isso, traz um estudo introdutório muito bom, escrito por Jean Pierre Chauvin e que ajuda muito na compreensão mais aprofundada da obra. Pra finalizar, a tradução é impecável e ainda mantem partes na língua original para não perder o sentido em determinados contextos, explicando e traduzindo nas notas de roda-pé. Achei isso incrível e recomendo muito mesmo a edição!
Acima de tudo, vale destacar que Os Miseráveis continua sendo uma obra assustadoramente atual. Por isso, se torna ainda mais importante o seu poder de promover dentro do leitor o sentimento de empatia, chamando a atenção para a existência de uma realidade distante da nossa privilegiada. Essa noção é fundamental, especialmente, para uma aplicação mais humanizada do direito, que permanece tão dogmático e insensível. Enfim, esse livro é arrebatador em mudar a nossa forma de enxergar o mundo ao redor. Afinal, qual a finalidade mais admirável da literatura se não essa?